segunda-feira, 19 de março de 2012

Sobre os sapatos...

E então contavam pelo menos 5 minutos em que me dedicava a saltitar por entre as poças e pedras soltas da calçada. Em intervalos razoavelmente regulares de 30 segundos me lembrava de amaldiçoar a maldita hora em que sucumbi à ideia estúpida de usar salto! Garoava aquela chuva fina e intensa que de tão fina e intensa me fazia sentir coberta por um véu gelado e úmido, que ensopava o cabelo, grudava a blusa, e fazia deslizar o sapato (de salto).

Salpicava todo o verniz vermelho com bolinhas de barro que saiam das frestas entre as pedrinhas da calçada, perigosamente soltas. Andava o mais rápido que minha cautela com as pedras e que meus saltos permitiam, já passava das 10 da noite. Talvez andar não era propriamente o termo, meus pés doiam, eu saltitava como podia no chão solto que escorregava, sempre com a cabeça baixa e o pescoço torto tentando não perder o foco, sempre no caminho.

Foi então que dei um saltinho mais ousado, desafiando uma poça monstro que se formava a minha frente e meus sapatos (sempre eles), mais precisamente do pé direito, achou que aquilo era de mais pra ele,que pular poças tudo bem, mas que pequenos lagos já era exagerar na petulância e num gesto de protesto arrebentou a tirinha de couro que o prendia ao meu pé.

Só não caí porque meu ultrajado pé se torceu todo pra me manter erguida, cobrando, é claro, sua parcela de dor. Só não xinguei mais porque desconhecia mais do que os 20 palavrões que proferi todos juntos e ao mesmo tempo,começando com aquele com P, passando por aquele com C ... e enquanto massageando o tornozelo ofendido, foi que tive tempo de levantar o pescoço e notar o prédio.

Branco, 15 andares com as sacadas pretas.

Sai do bar sem me preocupar muito com que caminho tomava,sabia que até em casa era só descer 3 quadras, à direita mais duas, independente da ordem que fizesse isso, daria certo. Fui andando entretida com a saga do salto, virando quase aleatoriamente aonde parecesse mais fácil seguir saltitando e desse jeito me coloquei ali bem em frente ao prédio.

Os olhos institivamente procuravam a janela do 4°, sacada da direita... a luz estava acesa!

Já fazia o que? Três anos desde a ultima vez? Pelo menos quatro desde que uma das chaves que abria a porta do 4° andar sacada da direita andava na minha bolsa, que os porteiros do prédio branco , não importando de qual turno, me conheciam pelo nome e me deixavam subir sem nem interfonar...
Subir sem interfonar era o tipo de coisa que acontecia no começo de toda piada de corno, mas eu jamais ia adivinhar que quando diziam " não leve a vida tão a sério" queriam dizer "não leve a vida tão a sério ela é uma piadista" e a vida tinha me separado uma piada de corno.

Olhava vidrada para aquela janela com a luz acesa, pensava no que ele podia estar fazendo agora... por esse horário, se bem conhecia, estava vendo algum filme legendado qualquer na tv, de preferencia algo violento e bobo, molhando o sofá de suor pós corrida da noite enquanto esperava o entregador da comida do jantar...

Tudo aconteceu bem perto da hora do jantar, bem intencionada coloquei o vestido azul de botões que ele tanto gostava, passei no japa comprar temakis e fui levar pro meu querido troglodita. 4 de salmão completo e dois de atum. Me sentia linda, me sentia feliz e orgulhosa de chegar tão perto de ser o que imaginava ser a mulher ideial pra um homem como aquele. Só não imaginava que um homem como aquele podia estar num dia como aquele, numa hora como aquela com aquela loira da calcinha rosa-choque. O resto foram gritos, lágrimas, barulho,um chumaço de cabelo loiro entre os dedos, e um cheiro incrivelmente forte de atum.

Mas aquilo já fazia tempo, tanto tempo que depois de um ano tentei perdoar e tudo que eu consegui foi entrar por uma ultima vez no apartamento de sacada preta do prédio branco e sair de lá convicta de que nunca mais voltava, nem passava na porta, pra não correr o risco... era de mais, depois de um ano de toda aquela cena achar um porta retrato escondido no gavetão com a foto daquele boto rosa-loiro.

E já fazia realmente tanto tempo que depois disso realmente nunca mais. Comprei roupas melhores, entrei na academia, deixei o cabelo crescer, aprendi 2 novas línguas, melhorei de emprego, comprei um apartamento maior, fiz uma tatuagem, mudei de religião, fiz amigos lindos e comecei a andar de salto...Sem tempo pra pensar nele, vivi a vida que sempre quis sem nunca me lembrar daquele passado com loiras em trajes sumários nem suor no sofá, ele era passado, eternamente passado, e eu uma nova mulher, sem qualquer rancor ou ressentimento.

O tornozelo já parava de doer, me erguia de vagar novamente pra retomar minha caminhada, quando o vulto apareceu... era ele, incontestavelmente era ele. Ou a sombra me enganava ou estava mais forte, os braços maiores... braços, antebraços e mãos...mãos que seguravam uma cintura fina e a jogava pra trás, pareciam rir, os cabelos dela voando para trás com o vento que vinha da sacada. Eram só sombras, pretas, sem nenhuma cor e no entanto eu podia jurar a cor amarela do cabelo e a rosa choque da calcinha.

Foi um daqueles momentos que de tão rápidos a gente não sabe falar como foi que começou, quando me dei conta meu sapato não estava nem no meu pé, nem mais na minha mão, ele voava querendo alcançar o quarto andar do prédio branco com a sacada preta, errando por muito, acertando só a guarita do porteiro.

Sai andando com uma digna claudicação, pois nada daquilo se tratava de orgulho ferido ou raiva e sim de um sapato quebrado que encontrava seu destino. Afinal eu não era do tipo que mulher que guardava rancor, sapatos quebrados e ressentimentos.